Muros, Voos e Arte

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andorinhas

Considerando-se o entendimento de Paulo Freire, para o qual a educação não se resume à escolarização. 

Na Idade Média e no início dos tempos modernos, as famílias eram extensas e as crianças misturavam-se com os adultos que trabalhavam em casa e educavam seus filhos, sobrinhos, netos e vizinhos no mesmo espaço em que moravam e trabalhavam. Não havia locais separados para a vida privada e a profissional, e tudo se passava nos mesmos cômodos.Quando cresciam e eram capazes de se separar das mães ou amas de leite, as crianças eram enviadas a outras casas, onde realizavam a aprendizagem dos afazeres domésticos e de ofícios. A família cumpria a função de assegurar a transmissão da vida, dos bens e dos nomes, mas não se implicava em envolvimentos afetivos e não tinha ideia de sua função educativa.

No século XVIII, com o surgimento da burguesia, a família começou a manter a sociedade a distância, e a organização da casa passou a espelhar essa preocupação. Teve início a separação entre a vida mundana, a profissional e a privada. Os adultos saíram para o trabalho fora de casa. O cuidado dispensado às crianças começou a ter novos sentimentos, uma nova afetividade, e isso passou a caracterizar a família moderna. A partir da valorização da criança como ser em formação (em desenvolvimento) e da preocupação com a sua educação é que a família moderna assumiu uma função moral e espiritual. A aprendizagem tradicional, que se realizava na casa, passou a ter lugar na escola.

A família e a escola foram as responsáveis pela retirada das crianças da sociedade dos adultos, confinando-as num regime disciplinar cada vez mais rigoroso, que nos séculos XVIII e XIX resultou na criação de internatos.

Hoje, com a reconfiguração da família, numa época de transição de valores, de rapidez de informações e na qual os pais trabalham fora de casa, a educação das crianças e jovens carece de mais atenção. Crianças e jovens estão cada vez mais sem limites e indisciplinados. Por vezes, o que é mais grave, não se respeitam, agridem os seus pares com uma naturalização que expressa a crise da alteridade que vivemos. Os pais estão bastante permissivos e culpados. Parecem não saber a diferença entre autoritarismo e autoridade. Filhos que mandam em seus pais. A infantocracia ocupa espaços largos nas relações entre adultos e crianças e é a marca da crise de autoridade que vivemos. 

Constata-se, também, um aumento no número de pais que tentam passar a responsabilidade de educar os filhos para a escola e a dificuldade que esta apresenta quando os estudantes chegam totalmente sem limite, sem respeito pela autoridade do professor e pelos colegas de sala. Colocar limites e regras tem sido um dos maiores problemas para os adultos. É a crise da responsabilidade que vivemos. Um grande equívoco cometido por muitos pais é querer suprir suas ausências no cotidiano de seus filhos agradando-os com excesso de presentes, regalias e permissividade.

Há muito é sabido que frouxidão não educa. Para educar é preciso determinação e firmeza. Da mesma forma, é preciso respeito dos adultos com as crianças/adolescentes e desses com os adultos. É um processo que só funciona quando em uma via de mão dupla. É uma relação dialógica que exige um esforço vital, afinal educar é educar-se, e educar-se é humanizar-se.

Adultos têm a tarefa, no ato de educar, de receber os mais novos no mundo em que vivemos e juntos, interagindo, descobrirem as mazelas, as virtudes e as terríveis consequências das atitudes sociais e individuais que marcam as relações sociais mais e menos humanas e aquelas desumanas.

O processo de educar crianças e adolescentes demanda atitudes dos adultos, exige sua mediação e participação das crianças/adolescentes, realizando-se num movimento de ações e procedimentos ora de Contenção, ora de Expansão e ora de Expressão. Desejável é que nessa tríade exista uma interseção desses movimentos educativos na relação do adulto com a criança/adolescente e que essa interseção seja predominante no processo educativo a ser vivenciado pelos adultos (pais e professores) e pelos mais novos (crianças e estudantes).

Ressalte-se, todavia, que, ao mencionar contenção, não se está falando de repressão, imposição ou agressão. A punição e o castigo, sobretudo os castigos físicos, são ações que na história da humanidade têm-se mostrado ineficazes na construção de sociedades menos violentas, mais justas e solidárias. As sanções sem reciprocidades com o ato cometido pela criança/adolescente, além de não terem sentido na construção da sua moral, mostram-se invariavelmente sem resultados na sua educação. Pode-se dizer que os castigos físicos associados a outros fatores contribuem com a construção de culturas de violência e desrespeito nas quais os indivíduos têm poucos limites. E essa falta de limites instaura convívios sociais marcados por intolerância, exclusão, discriminação e preconceitos.

Pesquisas mostram os riscos ou as disfunções que a prática de educar crianças/jovens pela violência física podem ter no desenvolvimento do indivíduo. Por meio de estudos das ciências sociais e humanas, constata-se que: 1 - as punições físicas oferecem um modelo inadequado de os adultos lidarem com situações de conflitos, que é o uso da força, da violência; 2 - a restrição imediata de um comportamento inadequado pelo uso da dor impede adultos e crianças/adolescentes de conhecerem as origens das dificuldades e suas motivações, em razão do que fica mais difícil a sua real elaboração e superação; 3 - a violência física facilita o surgimento de desvio no comportamento, como esconder ou dissimular o comportamento inadequado por medo da punição física; 4 - o comportamento desejado só acontece na presença do adulto que pune, pois o controle se dá por coação externa, e não pela aceitação íntima da criança ou adolescente; 5 - aparecem dificuldades na aprendizagem e na internalização das regras e dos valores de certo e errado, pois a violência física vem associada a sentimentos e sensações negativas; aumentam-se as chances de aparecerem dificuldades na aceitação da figura de autoridade.

A contenção como atitude que deve ser exercida na tríade da qual se fala aqui precisa ser compreendida como as ações e os procedimentos que os adultos devem desenvolver junto a crianças/jovens com o objetivo de dar a eles dados de realidade, segurança, conforto, adequabilidade e, sobretudo, limites de espaço e atitudinais, esses pautados pela cultura, portanto, pelos hábitos culturais e sociais. Trata-se de uma atitude firme dos adultos, que, por já estar há mais tempo nos contextos sociais em que se educa, vão agindo no sentido de fazer com que os mais novos compreendam o que podem e o que não podem e o que devem e o que não devem fazer. As atitudes de contenção na tríade são os muros. Aqui cabe dizer que o exemplo é um meio educativo eficiente. Faça como eu faço e deixe eu te ajudar a não fazer o que não deve fazer.

Já a expansão é movimento que envolve ações e procedimentos dos adultos de liberação corporal, verbal, de pensamentos das crianças e dos adolescentes nas suas atitudes de descobrir o mundo e os conhecimentos ao interagir com os ambientes físicos, geográficos, sociais e culturais.

Cabe, todavia, esclarecer que não se trata de maneira alguma de liberação desmedida como moeda de pagamento de culpas, muito menos de “vale tudo” ou “pode tudo”.  Trata-se, por conseguinte, de uma atitude que deve ser exercida na tríade de tal maneira que facilite os voos dos indivíduos ao longo do seu desenvolvimento. É a construção de asas para alçar voos. A expansão se dá com a permissão, inicialmente do adulto educador e, em seguida, com o amadurecimento da criança/adolescente frente às descobertas dos espaços e das possibilidades de ação junto aos ambientes físicos, culturais e sociais na perspectiva primeira da independência e, posteriormente, da autonomia.   

Por fim, eis o terceiro elemento da tríade, a expressão, que na perspectiva de uma pedagogia do bom senso e emancipatória deve ser compreendida sempre como a livre expressão, pois é ela que genuinamente expressa o ato de educar como educare, como algo que vem de dentro para fora, e não de fora para dentro, como no ato de adestrar ou domar. Do latim educare, educere, que significa literalmente “conduzir para fora” ou “direcionar para fora”. O termo latino educare  é composto pela união do prefixoex, que significa “fora”, e ducere, que quer dizer “conduzir” ou “levar”. O significado do termo (direcionar para fora) era empregado no sentido de preparar as pessoas para o mundo e viver em sociedade, ou seja, conduzi-las “para fora” de si mesmas, mostrando as diferenças que existem no mundo.

Falar de livre expressão nessa tríade do ato de educar é falar em diálogo. É admitir que o ser humano nasce como um animal interativo que, apesar de sua permanente incompletude, diferente de outros animais, não passa pelo processo de  metamorfose, portanto, já nasce gente.

O diálogo é, com certeza, um excelente ingrediente para as ações educativas e exige a escuta como aprendizado. A escuta, hoje tão em desuso, é o que irá garantir as relações de diálogo entre as gerações mais velhas e as mais novas.

A livre expressão enquanto ação educativa é a possibilidade de as crianças e os adolescentes manifestarem o que sentem, pensam, desejam, acreditam, receiam, sonham, inventam, fantasiam, mudam e transformam. É o espaço na tríade da transgressão, da imaginação e da arte. Da arte como expressão humana.   

 

Nesses dias em que a Alteridade, a Autoridade e a Responsabilidade andam em baixa, somos convidados a educar nossos filhos e estudantes entrelaçando a Contenção, a Expansão e a Expressão. 

 



[1] Diretor da escola Oga Mitá.